Nota Pública de Solidariedade à Profa. Tatiana Galieta

O Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (PPGEFHC UFBA/UEFS) apresenta, por meio desta nota pública, total solidariedade à Profa. Tatiana Galieta Nascimento, docente da UERJ que encontra-se, atualmente, em estágio pós-doutoral na Universidade Federal da Bahia, juntamente à este programa, sob supervisão do Prof. Charbel Niño El-Hani, docente permanente credenciado ao PPGEFHC, com bolsa Pós-Doutorado Sênior pelo CNPq, desenvolvendo a pesquisa "Relações interculturais e étnico-raciais em comunidade de práticas brasileiras: um estudo multicaso".

A professora passou por situação de violência, com claro silenciamento de sua fala, durante evento ocorrido neste mês de dezembro. Não consideramos que, em espaço acadêmico-científico, que possamos ter o cerceamento de falas, em especial de falas dissidentes, com a invisibilização das manifestações de quaisquer pessoas, especialmente se baseadas em questões de gênero, raça, etnia, sexualidade ou outras formas de preconceitos.

O PPGEFHC se manifesta, por meio de sua coordenação, na defesa das construções de espaços de diálogos que sejam inclusivos e democráticos, em especial na construção da ciência e da educação em direção ao bem-estar coletivo e à justiça social. 

Apresentamos, na íntegra, abaixo, a carta aberta apresenta pela Profa. Tatiana, que também pode ser acessada NESTE LINK.

Cordialmente,

Prof. Rafael Moreira Siqueira - Coordenador do PPGEFHC UFBA/UEFS

 

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Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2024.

Carta aberta à comunidade acadêmica.

Entre os dias 8 e 12 de dezembro de 2024, participei da Escola Interdisciplinar FAPESP de Humanidades, Ciências Sociais e Artes, realizada no Hotel Dona Carolina em Itatiba (SP). A Escola destinou-se a bolsistas de pós-doutorado que atuam no país. Atualmente, desenvolvo a pesquisa “Relações interculturais e étnico-raciais em comunidade de práticas brasileiras: um estudo multicaso”, com bolsa de Pós-doutorado Sênior do CNPq, no Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia, juntamente ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (PPGEFHC) e sob supervisão do Prof. Dr. Charbel Niño El Hani.

Além de pós-doutoranda sou Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) há 12 anos, atuando na Faculdade de Formação de Professores no Departamento de Ciências. Doutorei-me em 2008 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica e realizei dois pós-doutorados com bolsas da FAPERJ e do CNPq, desde então. Realizo, portanto, meu terceiro estágio pós-doutoral. Sou pesquisadora da área de Educação em Ciências e, atualmente, sou bolsista de produtividade do Programa Prociência da UERJ e FAPERJ. Em minha instituição, fui coordenadora do Programa de Pós Graduação em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade (PPGEAS/2014-2018), representante titular de minha unidade no Conselho Universitário (CONSUN/2018-2021) e coordenadora de projetos de pesquisa, ensino e extensão com apoios financeiros da FAPERJ, do CNPq, da CAPES e da própria UERJ. Sou integrante de dois grupos de pesquisa cadastrados no Diretório do CNPq: o Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação – DICITE, da Universidade Federal de Santa Catarina e o Coletivo de Estudos Interseccionais em Educação e Ciências – INTERSECS, do qual sou líder. Sou filiada a quatro associações científicas: ABRAPEC, ESOCITE.BR, SBENBio e ABPN. Atuo em dois programas de pós-graduação: o PPGEAS UERJ e o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Natureza (PPECN) da Universidade Federal Fluminense.

Interessei-me pela Escola Interdisciplinar FAPESP pela proposta e seus objetivos, presentes em seu Edital, dentre os quais destaco: “Conhecer e ter contato com a pesquisa desenvolvida por lideranças científicas do Brasil e do exterior em várias áreas do conhecimento” e “Interagir com os pesquisadores nacionais e estrangeiros de modo a estabelecer laços profissionais duradouros”. O formato da Escola também me interessou, por se tratar de um evento imersivo com duração de quatro dias e que contou, segundo a organização, com “conferências de palestrantes convidados, sessões de apresentação e discussão de pôsteres, sessões de conversas informais, além de espaços de discussão de projetos de pesquisa visando o estabelecimento de futuras colaborações”. Em minha carta de Declaração de Interesse, enviada no ato de inscrição, sinalizei que buscava “dialogar sobre meu objeto de estudo e metodologias de pesquisa semelhantes, além de obter um feedback sobre o projeto em andamento”, bem como “conhecer pesquisadores que atuem em linhas de pesquisa próximas às minhas, de modo a estabelecer redes entre os programas de pós-graduação nos quais atuamos”. Foi com grande satisfação que li meu nome entre os/as selecionados/as para participarem do evento.

A participação na Escola foi bastante produtiva, sobretudo no que diz respeito à troca com os/as colegas pós-doutorandos/as, tanto durante as apresentações orais e pôsteres, quanto nos espaços informais de interação, nos quais pude ter contato com pesquisas de diferentes áreas. Com isso, meus objetivos foram plenamente atendidos. Os quatro dias de convivência na Escola foram de completo respeito e de harmonia. Houve um clima leve e de positividade criado entre nós, além de um sentimento sincero e recíproco de companheirismo ali estabelecido. Dividi quarto com uma colega da USP que foi extremamente educada em todo o período em que estivemos juntas. Estive com um grupo de pesquisadores/as, com os/as quais tive uma relação mais próxima, e com eles já desenvolvi um laço afetivo. Em linhas gerais, o evento estava sendo agradável, até a sessão de encerramento. No momento final de avaliação da Escola, solicitei a palavra para apontar alguns aspectos que considerei importantes, pensando em uma maior diversidade de pessoas e de conhecimentos contemplados para a próxima edição. Entendi que aquele seria um espaço construtivo e aberto para a exposição de nossas críticas e sugestões, tal qual foi a instrução proferida na abertura do painel. Após todos/as os/as palestrantes terem falado, abriu-se o microfone para que somente três (dos 120 participantes da Escola) falassem. Levantei minha mão e seria a segunda pós-doutoranda com a fala. Iniciei apresentando-me em português. Pedi licença aos/às presentes para que falasse em minha língua materna, já que uma de minhas sugestões havia relação com a exigência do evento de que todas as exposições fossem feitas na língua inglesa. Nesse momento, fui bruscamente interrompida pelo membro da comissão científica que coordenava a atividade. Ele disse, de forma ríspida, que eu deveria falar em inglês. Eu tentei explicar que o pedido para falar em nossa língua estava relacionado com uma de minhas sugestões. Não consegui sequer terminar a frase, quando o senhor, de maneira autoritária, interrompeu-me novamente, solicitou que fosse desligado o microfone e declarou encerrada a sessão de avaliação. A terceira pessoa que falaria depois de mim também foi silenciada.

Ressalto que todos/as nós participantes, ao confirmarmos nossa presença na Escola, concordamos com o seguinte Código de Conduta (documento enviado por e-mail no dia 2 de dezembro de 2024): “Os participantes deverão tratar uns aos outros com respeito e consideração para criar um ambiente acadêmico, inclusivo e profissional nas Escolas FAPESP. A criação de um ambiente de apoio para permitir a discussão científica é responsabilidade de todas as pessoas participantes”.

Após o ocorrido, fui acolhida por algumas colegas e deixei o local com o sentimento de impotência e total desrespeito a mim e a todas/os presentes. Durante meu retorno, compartilhei com os colegas, via um grupo de WhatsApp, um texto no qual eu expunha os pontos que seriam expostos em minha fala (reproduzo o texto em anexo a essa carta). Gostaria que todos/as soubessem que ela seria feita de maneira respeitosa com a organização da Escola, tendo como propósito a reflexão sobre questões que considero relevantes de serem contempladas em eventos científicos. Tais sugestões baseavam-se em minha trajetória acadêmica, de quase 30 anos, vivenciada em diferentes universidades brasileiras, e em meu posicionamento teórico e político coerente com uma perspectiva de educação crítica, conscientizadora e transformadora.

Compreendo que a violência que sofri não é, infelizmente, exceção no meio acadêmico. Eu mesma já experimentei episódios como esse, tanto como vítima quanto como expectadora. É urgente que criemos mecanismos de denúncia e de acolhimento às mulheres pesquisadoras – sobretudo as jovens, as mães, as negras, as PCDs, as lésbicas e as transgêneros – que têm, repetidamente, suas falas interrompidas, suas intelectualidades questionadas e suas produções invisibilizadas. É imprescindível também que aprofundemos o debate, dentro das universidades brasileiras e latino-americanas, sobre a violência de gênero, realizando encontros e produzindo pesquisas que levantem dados, teorizem a questão e proponham mecanismos efetivos de proteção a nós, mulheres.

Encerro esta carta agradecendo a solidariedade prestada por parte dos/das pós doutorandos/as com os/as quais convivi, e muito aprendi, na Escola.

Seguimos na luta por igualdade e equidade de gênero na universidade e na sociedade brasileira.

Respeitosamente,

Tatiana Galieta

 

Anexo – Mensagem dirigida às/aos colegas pós-doutores da Escola Interdisciplinar FAPESP 2024, via WhatsApp (grupo aberto das/dos participantes)

Queridas, queridos e querides colegas com quem dividi esses últimos dias leves, felizes e de aprendizado.

Como fui silenciada no último momento de avaliação da escola, utilizo este meio para compartilhar com vocês os pontos que eu iria expor:

Sou Tatiana Galieta e peço licença para falar em português já que uma de minhas sugestões tem a ver com esse ponto.

Apresento algumas sugestões à comissão organizadora:

• Ampliar a divulgação junto às FAPs e PPGs de todos os estados brasileiros para que haja maior participação de pesquisadores do Norte, Nordeste e Centro-oeste.

• Convidar pesquisadores latino-americanos, para além de europeus e estadunidenses. Precisamos dialogar com a realidade vivenciada pelos/as cientistas do Sul Global. Também sugiro aumentar a participação de palestrantes negros e indígenas, sobretudo mulheres e pessoas trans.

• Sugiro rever a exigência da comunicação em inglês, sobretudo a fala. Esta tem sido uma ferramenta sistemática de exclusão de pessoas que não tiveram condições socioeconômicas de contato com o idioma desde sua mais tenra escolaridade. É certo que se espera de um/a pesquisador/a, em nível de pós-doutorado, familiaridade com a língua inglesa. Porém, se um dos objetivos da escola é conhecer pesquisas de outras áreas e estabelecer parcerias, este ponto pode se tornar uma barreira importante.

Sou professora da UERJ há 12 anos e estar aqui foi fundamental para renovar minhas esperanças na produção de conhecimentos inclusivos e diversos. Vi que essa nova geração de pesquisadores/as - que é fruto de políticas públicas estabelecidas a partir da luta de movimentos sociais - está atenta a pautas importantes da sociedade brasileira. Para meus/minhas colegas jovens aqui presentes, sugiro que pesquisem sobre o nosso país, com a nossa gente, e deem retorno à população que trabalha arduamente para que possamos fazer nossas pesquisas e recebermos nossas bolsas.

Aqui terminaria minha fala, mas finalizo com um breve comentário:

A violência política de gênero é algo que tem sido estudado e denunciado por parlamentares mulheres brasileiras. Este conceito foi elaborado pela atual deputada do RJ, Renata Souza, em sua tese de doutorado, e nos ajuda a compreender o que vivenciei hoje. Infelizmente, não foi a primeira vez que sofri essa violência. Na UERJ tenho ocupado espaços administrativos e acadêmicos nos quais precisei me colocar com firmeza sobre variados aspectos.

Às colegas e manas que hoje me acolheram, meu muito obrigada e axé.

A luta por mudança é sempre coletiva.

Retorno ao Rio com mais combustível ainda para voltar a ela.

Beijos afetuosos,

Tatiana.

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